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sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Lectio divina (Leitura orante): dados históricos e metodológicos

TERMINOLOGIA

A expressão leitura orante (lectio divina) significa: leitura divina, leitura orante, leitura lenta e atenta da Palavra de Deus. É uma maneira orante de fazer a leitura da Bíblia, dialogando com Deus a partir de sua Palavra. A leitura orante da Bíblia para ser bem feita, exige atenção, disciplina, assiduidade, humildade, gratuidade e prontidão para acatar os ensinamentos divinos. E ainda, atenção ao método proposto (leitura, meditação, oração e contemplação).

A leitura orante não é estudo e nem experiência extraordinária. É um modo orante de ler a Bíblia, para “escutar o que Deus tem a lhe dizer, conhecer a sua vontade e viver melhor o evangelho de Jesus Cristo” (Frei Carlos Mesters).

É colocar-se a disposição de Deus: “Fala Senhor que teu servo escuta” (1 Sm. 3,10) ou “Faça-se em mim segundo a tua Palavra”. (Lc. 1,38).

1. Conhecendo a história

Para os judeus, é a obediência à Palavra de Deus que garante o cumprimento da promessa: bênção, terra, e descendência. Israel é convidado a ouvir o Senhor e amá-lo, obedecendo e praticando todos os seus estatutos (Dt. 6,4, Dt. 30,11 - 14; Ex. 19,8; Ex. 24,7). A Palavra era para ser meditada, rezada e ensinada, estando no coração e na mente. Deveria ser escrita na entrada das casas para que o povo nunca deixasse de meditar. (Dt. 6,1 - 13). Os judeus entendiam que a Torá era a presença de Deus no mundo e que deveria ser experimentada pela oração, meditação e contemplação (Ne 8,1 - 12), pois é através da meditação que o povo descobre a vontade de Deus em seu dia-a-dia. (Js. 1,8; Sl. 1,2).

O Novo Testamento relata a relação profunda de Jesus com as Sagradas Escrituras, a tal ponto de assumir a Palavra de Deus em sua vida e missão. Para ele a Palavra tem que ser atualizada no hoje da história (Sl. 21(22); Lc. 4,16 - 30; 24,13 - 35; At. 8,26 - 40). A Igreja primitiva, a exemplo de Jesus, continuou a rezar e a praticar a Palavra, e ainda, pela ação do Espírito Santo, foi capaz de interpretá-la e reescrevê-la a partir de Jesus Cristo; a Palavra Encarnada, (Jô. 1,14), Nele se cumpre toda a escritura (Lc. 4,20).

Os santos Padres, dentre eles se destaca Orígenes, assumiram a prática da Igreja primitiva, de fazer uma leitura orante da Palavra, e assim, difundiram aos fiéis. Para eles “a leitura divina supõe escuta e resposta”. Outro grupo importante pela prática da leitura orante são os monges. Eram assíduos na meditação, vivendo na intimidade com Deus por meio da Palavra.

Infelizmente, ouve um período, a partir do século VIII, em que o povo não teve mais acesso mais Palavra, passando a conhecê-la quase que unicamente por meio da História Sagrada e das pinturas dos vitrais das Igrejas. Entretanto, a Bíblia continuava sendo lida e meditada nos monteiros. Entretanto, a leitura orante, como é conhecida hoje, com seus quatro passos: leitura, meditação, oração e contemplação, foi sistematizada no século XII, por um monge Cartuxo, chamado Guido II da ordem cisterciense.

Lamentavelmente, na Idade Moderna, aconteceu outra crise de ruptura com a Bíblia, tudo passa a ser interpretado à luz da razão, ou de modo oposto, no fundamentalismo e sentimentalismo. Porém, Deus que jamais abandona o seu Povo, por meio de seu Espírito Santo, mobilizou a Igreja através do Vaticano II para que retornasse as Sagradas Escrituras (DV 21 - 26). Daí pra cá, a Igreja tem conclamado os fieis para se aproximarem mais da Bíblia, conforme recomendou a Conferência de Aparecida: “entre as muitas formas de se aproximar da Sagrada Escritura, existe uma privilegiada à qual somos convidados: a lectio divina ou exercício da leitura orante da Sagrada Escritura. Essa leitura bem praticada conduz ao encontro de Jesus Mestre” (DA 249). Também o Sínodo da Palavra lembra aos fiéis a importância de desenvolverem uma intima relação com a Palavra. Cada Igreja particular tem se empenhado em realizar atividades que concretizem esse projeto, como tem feito a Arquidiocese de Londrina, que vem estimulado muito a Leitura Orante da Palavra, através da oração pessoal e comunitária, também, por meio de retiros, encontros de capacitação da Leitura Orante, reuniões dos grupos bíblicos de reflexão, escolas bíblicas e teológicas.

2. Os quatro passos da leitura orante segundo Guigo II

No século XII, o monge Guigo II, enquanto fazia trabalhos manuais, trazia consigo uma escada. Pediu a Deus que lhe desse a graça de subir até Ele, assim como se sobe em um andaime, foi então, que teve uma visão, na qual, viu uma escada com quatro degraus que chegava até Deus, chamada “escada espiritual”, ou “escada dos monges”, onde cada degrau estava interligado com o outro, sendo que o primeiro degrau era sustentado pela Palavra. Os degraus eram: leitura, meditação, oração e contemplação. A base da escada unia a terra ao céu, chegando até Deus. Na escada de Guigo cada degrau precede e depende do outro, nenhum pode subsistir sem o outro. Assim acontece com a leitura, meditação, oração e contemplação.

A leitura oferece o material para a meditação. A assimilação da meditação leva a oração e a oração provoca a contemplação, segundo a qual, o fiel passa a ver o mundo com os olhos de Deus, ou seja, se compromete, tornando-se discípulo missionário.

Leitura (lectio): é o primeiro degrau da escada. Ela se propõe a responder a seguinte questão: O que o texto diz em si? É um processo lento, onde o leitor precisar ler várias vezes o texto, até se familiarizar com a Palavra, sendo capaz de contar espontaneamente o texto lido. Nesse passo, recomenda-se que se observe as palavras chaves, os verbos, as palavras repetidas, podendo grifar a expressão que mais chamou a atenção. Ao ler o texto sagrado não se pode desconsiderar o contexto em que foi escrito. Faz-se necessária uma leitura atenta e lenta para não manipular o texto, considerando os três níveis: literário, histórico e teológico.

“No nível literário vai-se analisar o texto, descobrindo a sua relação com o contexto literário. Algumas perguntas podem ajudar como: Quem? O que? Por quê? Quando? Como? Com que meios? Como o texto se situa dentro do contexto literário do livro de que faz parte? No nível histórico vai-se buscar conhecer o contexto nos aspectos: político, social, econômico, ideológico, afetivo, antropológico e outras. Procura-se descobrir quais os conflitos que estão por traz do texto ou nele se refletem para, assim, perceber melhor a encarnação da Palavra de Deus na realidade conflitava humana, tanto do povo do Bíblia como nossa. No nível teológico vamos procurar saber o que Deus tinha a revelar naquele tempo e como o povo respondia, assumia e celebrava a Deus. Busca-se o sentido de cada palavra. Aconselha-se a usar alguns recursos como: comentários, notas de rodapé, dicionário”... Depois de se ter obtido todas essas informações, quando se sente interrogado pela Palavra, então chegou o momento de se passar para o segundo passo.

Meditação (meditatio): é o segundo degrau da escada orante, o momento de atualizar a Palavra. A Leitura Orante, é como um espelho, que reflete o passado no presente, no chão concreto do dia-a-dia. A meditação busca uma resposta iluminadora para a vida a partir do próprio texto sagrado. “O que o texto me (nos) diz hoje”? Propõe-se uma reflexão profunda, e interpeladora como fez Maria (Lc. 2,19.51). A Palavra faz uma conexão entre o texto e a vida, entre nós e Deus. Algumas perguntas podem ajudar como: “Qual é para mim a idéia e o valor fundamental do texto lido? Por que é importante? O que me sugere e como me questiona? Com qual personagem me identifico? Que sentimentos e atitudes me transmitem? Como posso, com esses pensamentos, iluminar minha vida? Trata-se de deixar que a Palavra penetre profundamente na intimidade do meu coração, e depois mobilizar todas as energias para confrontar-se, ir dentro da Palavra e converter-se a ela. A meditação indica o esforço que se faz para atualizar o texto e trazê-lo para dentro do horizonte da vida e realidade, tanto pessoal como social”. Outro modo de meditar é “ruminar” a Palavra, repetindo várias vezes o versículo que mais chamou a atenção, saboreando-a até que ela ilumine a missão (Ez. 3,1 - 3). A meditação nos ajuda a compreender, pela ação do Espírito Santo, o próprio Deus (2 Tm. 3,16), e a entender o sentido pleno da Palavra (Jo. 16,13). Quando a Palavra provoca desejo de falar com Deus, então chegou o momento de subir mais um degrau.

Oração (oratio): é o terceiro degrau. Acontece quando se é capaz de perceber a luz da leitura e meditação os apelos de Deus. É quando a Palavra lida e meditada provoca um diálogo com Deus. “O que o texto me (nos) leva a dizer a Deus”? É o momento de resposta, de confrontação entre o projeto divino e a fragilidade humana. Os questionamentos feitos pela Palavra se tornam oração, motivo de louvor, súplica, ação de graças, arrependimento. A oração faz voltar a Deus o que ele mesmo disse pela Palavra e pela ação do Espírito Santo. Ela se insere na própria vida. O que se vive torna-se conteúdo da oração e expressão do amor de Deus. A oração leva à ação e a ação leva à oração (Lc. 10,29 - 42). Entretanto, os momentos reservados são essenciais para um encontro íntimo e profundo com Deus que se revela na Palavra e na vida humana. Toda a oração deve ser movida pela Palavra, deve-se falar com Deus a partir do texto. Quando as palavras se esgotam e brota no coração o desejo de ficar calado diante de Deus, apenas deixando-se ser amado por ele, então está na hora de passar para o passo seguinte.

Contemplação (contemplatio): é o último degrau da escada. Para a tradição da Leitura Orante, a contemplação é o ápice, o ponto alto do método, é o resultado da assimilação da Palavra de Deus no coração humano. Leva a dar uma resposta a Deus assumindo compromissos de acordo com a Palavra: “O que o texto me (nos) leva a viver”? A contemplação é o resultado dos três primeiros passos, é como a seiva de uma planta, é a doçura, o sabor, o que restou da leitura, meditação e oração. É a hora de fixar o olhar em Deus (Sl. 25,15a), deixando-se abraçar por Ele (Lc. 15,20). A contemplação não requer palavras, mas um silêncio contemplativo. Ela convida a conversão, ao compromisso, ela leva a ação.

irmã Solange das Graças Martinez Saraceni, ICP


REFERÊNCIA

BIANCO, Enzo. Lectio Divina: encontra Deus na sua Palavra. São Paulo: Salesiana2009;

CONFERÊNCIA DOS RELIGIOSOS DO BRASIL. A Leitura Orante da Bíblia. São Paulo: Loyola, 1990;

MESTRES, Carlos; BROLLO, Elda. Leitura Orante da Bíblia: São Paulo: Paulinas, 2008 (Florder);

ZEVINI,Giorgio. A Leitura Orante da Bíblia. São Paulo: Salesiana, 2006

 

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